quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A Bela, a fera e a sabedoria



Voltando aos contos de fada... A Bela e a Fera é a de que eu mais gosto! Bela tem origem francesa e faz um brinde à leitura, à inteligência e à sabedoria como nenhuma outra! Bela não é princesa, é filha de um artesão inventor, mora numa casa simples de um vilarejo e também perdeu a mãe, dessa forma, precisa cuidar de seu pai.

Bela adora ler, frequenta bibliotecas e tem uma sabedoria para além da inteligência racional. Bela não escorrega no maior deslize que o ser humano faz ao falarmos sobre amor, ir pelo imaginário... Quando se trata de amor, é muito comum o ser humano ir pelo imaginário. Ir pela beleza exterior, pelas falas sedutoras, pelas promessas de plenitude, pelo dinheiro. O imaginário se sobrepuja e engolfa o simbólico e o intelecto. A pessoa, muitas vezes, fica à mercê do outro, sem conseguir raciocinar ou se posicionar. Na clínica, podemos observar o quanto a pessoa, na fase da conquista e do namoro, já havia notado evidências de arrogância, narcisismo e egoísmo; ou qualquer outra característica que possa não ser bacana para um relacionamento a dois. Porém, a pessoa, ofuscada num véu imaginário, vê apenas o que gostaria, ou o que sua fantasia lhe permite. Depois, com o tempo, a pessoa começa a perceber que não foi a melhor escolha para si. 

Bela não se equivoca com Gastão. Bonitão e galanteador, Gastão aparece em várias situações tentando seduzi-la. Mas Bela não se ofusca com a beleza, as posses ou com as falas vazias de Gastão. 

Bela usa sua sabedoria para enfrentar os perigos da floresta, para arquitetar um meio de salvar o pai; canaliza sua energia psíquica para direções mais construtivas e proveitosas em sua vida. E assim, escolhe o amor com o coração e não com a fantasia de um véu imaginário.

Por: Fabiana Ratti, psicanalista   

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Como eu era antes de você e o desejo de viver


Como eu era antes de você (2016) é um drama sobre um rapaz rico que após um acidente fica tetraplégico e deseja fazer eutanásia tirando sua vida. O filme é uma parceria Inglaterra – EUA, muito 
bem dirigido por Thea Sharrock e baseado no romance homônimo de Jojo Moies, segundo a autora, inspirado em fatos reais.

É um filme bonito, sensível, com toques de humor, discute questões profundas de relacionamento e desejo de viver, porém, comete um erro crasso que o coloca com uma visão anterior a Freud, ele está há pelo menos 100 anos atrás de seu tempo.

Antes de ler à critica assista ao filme pois é impossível discutir os pontos sem tocar em como o filme termina.

Vamos começar pelas excelentes interpretações. Louise (Emilia Clarke), uma moça fofa que usa roupas excêntricas e tenta sempre estar feliz, vive com sua família em uma pequena cidade da Inglaterra. Porém, suas aptidões, podemos dizer, são o que Fernando Pessoa descreve em A Tabacaria: Não sou nada/ Nunca serei nada/ Não posso querer ser nada / À parte isso, tenho todos os sonhos do mundo. Assim, quando sai de seu trabalho e tenta buscar um novo emprego, sua vida passa a ser difícil.

Por outro lado, temos Will (Sam Claflin), um moço rico, bonito, que tinha um mundo a seus pés, mas foi avassalado pelo Real sofrendo um terrível acidente. Ficou tetraplégico, com todas as tristes consequências que isso implica e, dessa forma, abalando sua estrutura emocional.  Assim, ninguém consegue conviver com ele. Família, amigos ou mesmo acompanhantes.

Então, temos um desafio para Louise. Sem um CV brilhante exigido no século XXI, acompanhante poderia ser uma excelente saída para Louise que precisa sobreviver e ajudar a sustentar sua família. Depois de alguma luta, Louise consegue ultrapassar o desafio como também ter um romance com Will, o que é esperado mas também não tira o seu charme, principalmente fazendo o contraponto com seu namorado atleta que tem todas as mobilidades musculares e ósseas possíveis, mas não tem visão ou um coração tão doce quanto Will passa a demonstrar.

Ok. Até então temos um filme Hollywoodiano bonito e com um roteiro esperado.

Nesse momento, mesmo com Louise em sua vida, um pouco mais bem-humorado, conseguindo ir a programas, conviver com pessoas, Will continua com os planos de fazer eutanásia e tirar sua vida num dia pré-agendado.  Então temos o cerne da história. Louise fica bem triste porque não consegue devolver-lhe o desejo de viver e assim pensa com sua irmã um último estratagema de fazê-lo ligar-se à vida. E então vem o grande equívoco. Elas apostam no princípio do prazer. Elas acreditam que festas, viagens, passeios, segurariam a vida de alguma pessoa. Seria o mesmo que dizer que dinheiro compra a felicidade. Se esse é realmente um caso real, com certeza não deu certo e não teria como dar. Em 1920 Freud escreveu que existe um Além do princípio do prazer. Há algo a mais. Há algo que extrapola o prazer e que faz questão ao sujeito ligando-o à vida.



Em uma situação em que eu atendia uma criança com câncer em estado terminal (ela veio a falecer 15 dias depois), uma voluntária chegou para ela para ofertar-lhe coisas prazerosas como doces, balas e passeio. Ela recusou e disse que queria fazer contas de matemática. A voluntária ficou escandalizada e disse que ela deveria descansar, que ela não ‘precisava’ fazer essas coisas, que deveria fazer coisas legais e ela voltou a falar de seu desejo: quero fazer conta de matemática. Stephen Hawking que o diga!

Então, é muito interessante como a sociedade ainda não absorveu os conceitos preciosos de Freud. O sujeito é singular. Não é universal. Ou seja, é legal viajar, passear, festejar. Sim. A maioria das pessoas gosta. Mas, não é isso que segura o desejo de viver. Não é isso que faz o sujeito querer continuar vivendo. Se fosse assim, plaboys que vivem de festas não usariam drogas e sairiam desgovernados atropelando pessoas e capotando carros, por exemplo.

Ela, na convivência com ele, não apenas passou a amá-lo como também descobriu algo que ela sabia fazer muito bem. Ela encontrou um talento. Ela saiu da posição de Álvaro de Campos da Tabacaria: “serei sempre o que não nasceu para isso/ serei sempre só o que tinha qualidades/ Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta.” Ela saiu dessa posição e mudou sua posição subjetiva frente à vida.

Ao que parece, a vida dele ficou melhor, sim, sem dúvida. O amor é um passo? É um grande passo! Mas eles acreditaram que bastava ele receber coisas que o deixaria feliz e o ligaria à vida. E não basta. E nem sempre é a felicidade que liga o sujeito à vida. O ser humano precisa de outras coisas. Precisa  ofertar. Precisa se sentir útil ao outro, se sentir especial em suas qualidades na ligação com o outro para ter um propósito de vida e desejar viver.

O filme é bonito mas perde a chance de pensar na subjetividade singular de cada um que liga o sujeito à vida e impacta o expectador com a questão de eutanásia e suicídio programado... pena, porque a questão é anterior a isso.



Por: Fabiana Ratti, psicanalista