quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Curtindo a vida adoidado

       

           
Júlia Galli-Educadora
aeljugalli@gmail.com

              “Curtindo a vida adoidado” (Ferris Bueller's day off) é uma comédia adolescente filmada nos EUA no ano de 1986 e dirigida por John Hughes, (que também produziu e escreveu o roteiro). O filme conta a história de Ferris Bueller (Matthew Broderick), um típico adolescente americano, cuja maior ambição é ter um carro e o maior objetivo é aproveitar a vida ao máximo. O filme vai mostrar um dia de folga de Ferris, ao lado de sua namorada, Sloane Peterson e de seu melhor amigo, Cameron.

Por trás da aparente inocência e irresponsabilidade do enredo, o filme conta com cenas antológicas, roteiro bem construído e excelentes atuações, o que o torna um clássico do gênero, lembrando também, que o filme quebra a regra de ouro do cinema: o ator nunca deve olhar diretamente para a camera. A princípio pode parecer apenas mais uma comédia adolescente, mas à medida que vamos assistindo ao filme, ele vai se revelando ser uma crítica ferina ao descaso, incompreensão e cegueira dos adultos em relação aos anseios e angústias dos adolescentes, algo que poucos diretores conseguiram fazer tão bem como John Hughes. O maior mérito do filme é dar voz ao turbilhão de emoções dos adolescentes, com sensibilidade e humor. Outros filmes já falaram sobre essa difícil fase, como “Juventude Transviada” que apesar de belo, é um drama pesado (um chororô interminável), mas John Hughes consegue falar desses dramas de forma leve e algumas vezes até sarcástica, garantindo risadas do começo ao fim.

Enquanto os adultos, representados principalmente pelos pais de Ferris e pelo prepotente diretor da escola, continuam exatamente do mesmo jeito do início ao fim do filme, todos os personagens adolescentes passam por um profundo processo de transformação no decorrer da história. Cada qual a seu modo, buscando uma maneira de se auto afirmarem e amadurecerem.
          
             Começando por Ferris, que representa o típico adolescente americano, individualista e descrente do mundo em que vive, ele não acredita mais na família, nem na escola, nem em nenhum “ismo”, acredita apenas em si mesmo, e a sua única certeza é que a vida passa muito rápido, e seu lema é aproveitar a vida da melhor forma possível.  A verdade é que ele se recusa a ser como os adultos, e mesmo sabendo que esse processo é inevitável (o de se tornar adulto), ele não quer olhar para trás e ver que não aproveitou a vida.

             Já a namorada, vivida pela atriz Mia Sara, inicialmente se apresenta como uma adolescente que vive o presente e que quer apenas aproveitar a vida, enquanto não decide se deve ou não se casar com o namorado, em alguns momentos fica a dúvida se ela tem essa pretensão, pois em uma cena ela chega a mandar um beijo para o futuro sogro. Embora ela passe boa parte do filme sem nenhum plano para o futuro, ao final do filme, ela tem certeza de que irá se casar com Ferris.

Cameron (Alan Ruck) é o personagem que na minha opinião mais amadureceu no decorrer do filme. Ele é o melhor amigo de Ferris e, além de hipocondríaco, tem sérios problemas de relacionamento com o pai. Ele começa o filme numa cama, dizendo a Ferris, “me deixa apodrecer em paz” mas no decorrer da trama ele faz literalmente um mergulho dentro de si, cena por cena, passando por diversas etapas para poder enfrentar o pai e se emancipar. De forma surpreendente, ele se revela o personagem mais corajoso do filme, mais ainda que o nosso anti-herói Ferris.

Mais surpreendente ainda é a transformação da irmã de Ferris (Jennifer Grey). Jeanie Bueller é obcecada pelo irmão, e passa o filme inteiro tentando desmascará-lo. Nessa obsessão pelo irmão (mais precisamente pelo fato do irmão poder fazer tudo o que quer sem ser pego), ela deixa de ter vida própria, até acabar numa delegacia, onde é obrigada a olhar para dentro de si mesma. Na delegacia ela encontra um rapaz aparentemente drogado e desse encontro surge um diálogo revelador. Embora o personagem (vivido pelo ator Charlie Sheen) esteja (visivelmente) drogado, ele é o único que consegue ver de forma clara o problema dela. Pela primeira vez ela se depara com alguém que a enxerga do jeito que ela é, e que lhe dá atenção. Em um momento ele diz que sabe qual é o problema dela, mas quer ouvi-lo da boca dela. Mais freudiano que isso impossível.

Outro fato interessante do filme é que os personagens que a sociedade americana em geral considera como perdedores; começando por Cameron por ser tímido, a dupla de manobristas do estacionamento, um latino e outro negro, e o drogado na delegacia, são os que de alguma maneira vão causar surpresa e admiração nos espectadores, o primeiro pela coragem, a dupla pela esperteza e o drogado pela lucidez e discernimento. Por essa e muitas outras razões, eu considero esse filme o melhor de John Hughes.

Para não dizer que não falei do diretor da escola, fica a dúvida, será que ele deixou a sua arrogância e aprendeu alguma coisa com essa história? Bom, assistam ao filme e tirem suas conclusões.