quinta-feira, 31 de maio de 2012

Eu, Tu, Eles



Por: Fabiana Ratti, psicanalista

Eu, Tu, Eles (2000), filme brasileiro de Andrucha Waddington, é um bom caminho para continuarmos discutindo a questão do casamento aberto.

Darlene (Regina Casé), Osias (Lima Duarte), Zezinho (Stenio Garcia) e Ciro (Luiz Carlos Vasconcelos) formam um quarteto amoroso... Sem perceber, um relacionamento começa, depois um primo vem morar em casa, então, o mais velho já está mais cansado, deixa mais um estranho entrar... uma vingança, um ciúmes... e assim vão vivendo... como quem não está percebendo, como quem não sabe de nada...

À primeira vista, o filme me pareceu impossível. Como um realismo fantástico. Depois, me pareceu muito mais real do que nos damos conta. O filme tem uma névoa inconsciente. Não ditos. Silêncios. Amor.Carinho. Trabalho. Há uma divisão de funções. Cada um entra com o custo que está disposto a pagar. Um tem a casa e não quer trabalhar. Darlene trabalha forte na ‘roça’. O outro cozinha. O outro está de passagem.

Tem uma perda e tem um ganho. Muitas e muitas pessoas começam a ver o que está acontecendo, perceber que o cônjuge demora para chegar, passa uma noite fora, um final de semana e deixa essa névoa no ar. A interrogação fica e ninguém toca no assunto. Para fazer a fixa limpa, há um custo. O cônjuge pode pedir em troca algo que a pessoa não está disposta a pagar.

O filme mostra como Darlene dava duro no trabalho diário, Osias estaria disposto a ouvir da mulher as queixas e reclamações dela? Estaria disposto a por a mão na massa para, com isso, enfrentar e tirar o primo do páreo? Por outro lado, Darlene estaria disposta a enfrentar e construir uma nova vida com Ciro? Com os filhos e pagar todos os custos de um casamento a dois? As perguntas podem continuar...

E, são essas as mesmas interrogações que podemos fazer para certas situações de ‘névoa inconsciente’, esses não ditos pairando no ar é responsabilidade apenas de um? Um é o vilão e outro é o bandido?

Miller, psicanalista lacaniano desenvolveu o conceito de parceiro-sintoma. Ou seja, em determinados casos, existe uma parceira sintomática: um não quer ver e o outro não quer falar. Há um acordo tácito, implícito... por incrível que pareça, há perdas, mas há ganhos secundários... E que Andrucha, com seus excelentes atores conseguiram admiravelmente explicitar em uma obra de arte. 

sábado, 26 de maio de 2012

Frida



Por: Fabiana Ratti, psicanalista


De vida curta, porém tempestuosa, a artista plástica mexicana Frida Khalo (1907-1954) tornou-se um grande nome com sua pintura surrealista.

O filme americano Frida (2002), dirigido por Julie Taymor e interpretado por Salma Hayek, mostra um bom retrato da biografia de uma menina que passou muitos sofrimentos na infância. Com acidentes e graves doenças, aos 18 anos teve um acidente quase que fatal num bonde, fazendo com que ficasse por meses sem poder sair da cama. Com o tempo passado na cama, começa a desenvolver a pintura, uma forma de expressão que foi ganhando seu coração e o do público. 

Frida Khalo é uma personalidade. Com talento e ousadia, conquistou seu espaço no meio artístico. No amor, teve um casamento aberto com Diego Rivera (Alfred Molina), também artista plástico e namorador.

Como é preciso escolher um tema no filme para a discussão, escolho a questão do casamento aberto. Muitos dizem que o natural do ser humano é a poligamia. Sim. Freud mesmo diz que o ‘inconsciente é assexuado’. O inconsciente é regido por outras leis, diferente do racional. Para o inconsciente não existe tempo ou espaço. Tudo pode. Tudo é permitido. Haja vista o sonho... quantos símbolos, imagens e emoções misturados? O sonho é um raio X do inconsciente. Ou seja, o natural é a poligamia.

Porém, quem diz que o ser humano é um ser absolutamente natural? O ser humano vive em sociedade. É o único ser dotado de razão. Para tanto, tem alguns privilégios mas também paga um preço por isso... e o preço da civilização é o ingresso no mundo das leis, das regras: não matar, não roubar, olhar dos dois lado para atravessar a rua, etc.

Ou seja, para viver ao lado de uma pessoa, também é preciso incluir as regras. Para conviver com o outro, as pessoas discutem desde pasta de dentes e uso de shampoo até as regras de comportamento , que, num casamento, na maioria das vezes, no mundo ocidental, inclui a monogamia.

Toda esta discussão para dizer que o filme Frida retrata uma guerra. Uma guerra dolorosa e sangrenta entre Diego Rivera e Frida Khalo. Tudo era permitido no relacionamento, eram liberais. Porém, Frida Khalo fica decepcionadíssima, um golpe profundo quando descobre que Diego dormia com sua irmã.

Por que a surpresa? Não era liberal? Ah, mas isso não podia. Por que não? Se não existem regras... tudo é permitido. Tudo. E precisa estar disposto às conseqüências quando se faz este pacto. Como já discutimos com os ‘Irmão Karamasov’: se Deus não existe, tudo é permitido. Se não existe algo, uma lei maior que rege o relacionamento, tudo passa a ser permitido. (na monogamia ou na poligamia é preciso incluir as regras). A questão é que a pessoa, quando exclui as regras, deixa a face humana (racional e emocional) e cai na vida animal: sexo e agressividade. Era o que rolava com o casal. Uma evidência da importância das regras no mundo da civilização... se não, nos tornamos quase animais. 

Uma tristeza as seqüelas emocionais e o desamparo que se abatia em Frida Khalo com os golpes no relacionamento. Um preço muito alto por uma falsa ilusão de liberdade...

sábado, 19 de maio de 2012

Non, Je Ne Regrette Rien - Édith Piaf



Por: Fabiana Ratti, psicanalista 
Vamos falar hoje de uma música. Uma maravilhosa música de Édith Piaf (1915-1963), intitulada Non, Je ne regrette Rien, não, não lamento nada, não me arrependo de nada... Uma letra que entoa o adeus ao passado. Uma história de amor que, a partir desse amor, tudo estará pago, esquecido e varrido (C'est payé, balayé, oublié), Não me importo com o passado (Je me fous du passé!), eu parto do zero (Je repars à zero) diz ela.

As canções de Édith Piaf  retratam fases e marcas de sua vida, de sua sofrida e batalhadora história de vida. Assim como Édith Piaf enfatiza esse momento de emoção de deixar o passado e partir do zero, esquecer os sofrimentos e as angústias e partir para uma nova vida, é um tema muito recorrente nas análises pessoais.

E, para ser psicanalista, é preciso realmente crer nas mudanças. O trabalho da análise é para que a pessoa saia do ‘automatismo de repetição’ como diz Freud, que a pessoa saia do redemoinho de repetições, de sentimentos e ações que martelam e insistentemente se repetem acompanhadas de mágoas e lembranças do passado e, muitas vezes, impossibilitam as ações do futuro.

Porém, não é uma tarefa fácil! O passado marca o sujeito, o afeta, traz conseqüências, muitas vezes, irrevogáveis... O sujeito é uma soma de seu presente, seu passado e de projetos futuros. O que é possível é saber lidar de forma a somar, a prosperar e a construir a partir do passado, sem ficar se martirizando e se consumindo. Ou seja, não cair no ‘automatismo de repetição’ remoendo o passado e, fazer novas escolhas de maneira a mudar a direção da vida, porém, é preciso esforço, dedicação e investimento. Desta forma, não sei se é possível um corte, uma ruptura... que de um dia para o outro, de uma hora para a outra, tudo seja esquecido e ultrapassado... mesmo com um novo amor... pois, o inconsciente insiste em se repetir... é uma de suas características mais fortes, e temos de saber lidar com ela e não sucumbir a ela. 


Non, Je Ne Regrette Rien
Édith Piaf 

Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!
Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
C'est payé, balayé, oublié,
Je me fous du passé!
Avec mes souvenirs
J'ai allumé le feu,
Mes chagrins, mes plaisirs,
Je n'ai plus besoin d'eux!
Balayé les amours
Avec leurs trémolos
Balayés pour toujours
Je repars à zéro...
Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Ni le bien qu'on ma fait,
Ni le mal - tout ça m'est bien égal!
Non... rien de rien...
Non... je ne regrette rien
Car ma vie, car mes joies,
Aujourd'hui, ça commence avec toi!

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Habemus Papam, de Nanni Moretti (Itália/França, 2011)


 

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

Nanni Moretti, ator e diretor italiano, tem sido conhecido por seus filmes com um toque de documentário numa nova linguagem  cinematográfica. Com humor ácido, discute questões humanas sempre tocando em criticas políticas, religiosas e sociais.

Neste último, Habemus Papam, Nanni Moretti se supera, consegue levar o filme, o tempo todo, no mesmo ritmo cômico, o que não se via nos anteriores, além de manter o questionamento crítico a cada fala e a cada respiração. É preciso ficar atento pois a cada detalhe existem críticas mordazes, principalmente contra o saber absoluto da  Igreja Católica.

Habemus Papam narra a história de um Cardeal (Michel Piccoli) que, eleito Papa, não consegue assumir sua função, nem mesmo apresentar-se ao público. Afinal, qual seria o desejo do Papa? Desta forma, o conclave permanece e ninguém pode sair do Vaticano até que seja feito formalmente o anúncio do Papa eleito. O convívio entre os Cardeais vai mostrando o ócio em que eles vivem, os vícios em remédio, pequenas disputas, as proibições inúteis, a gula, etc.

O Cardeal eleito demonstra sua insatisfação. O desejo de repensar a vida, a responsabilidade de assumir o cargo, o desejo de não continuar a mesmice, de não ter uma vida apenas de formalidades.

Enquanto o Cardeal repensa a vida indo a uma analista, o referendo deixa um pessoa trancada no quarto em que o Papa estaria para ‘representar’ sua permanência no Vaticano e, neste momento temos uma das mais belas cenas, que para mim, faz um pequeno resumo do que Nanni Moretti apresenta no filme.O falso Papa, trancado no quarto, coloca em som bem alto a maravilhosa Mercedes Sosa cantando: “Todo Cambia” e os personagens do filme aparecem todos afetados pela música latina dançando ao belo som de sua voz.   

E, realmente seria de suma importância que tudo mudasse, como uma corrente natural da vida. Quanta mudança a Igreja Católica precisa fazer para acompanhar seus fiéis do século XXI e não viver de imagem, de um semblante, de uma estrutura que está há anos luz da realidade, da vida e do sentimento das pessoas. Como é preciso haver uma mudança em que os psicanalistas não fiquem surdos ao ouvir os pacientes, querendo encontrar e justificar com o que já está estabelecido. Moretti coloca uma cena em que a psicanalista, independentemente do que ela ouve, tudo é ‘déficit de aceitação’. Ou poderia ser qualquer outro nome como ‘déficit de atenção’ muito na moda hoje em dia, ou ‘hiperatividade’, etc. É preciso haver mudanças para acompanhar o mal estar na civilização do século XXI e o personagem de Michel Piccoli representa muito bem essa idéia. Uma pessoa angustiada querendo descobrir qual o seu desejo e não ficar estratificado em protocolos, em obrigações e representações que talvez não sejam o seu desejo.

Tanto o discurso religioso, quanto o discurso psicanalítico precisam sair de protocolos e semblantes que os cegam e os ensurdecem para que, cada um na sua função possam ir mais e mais na direção da sustentação do desejo e dos projetos dos seres humanos.

Afinal, tudo é passível de mudanças...  

http://www.youtube.com/watch?v=g8VqIFSrFUU


quarta-feira, 2 de maio de 2012

O silêncio de Lorna





Por: Fabiana Ratti, psicanalista

Em O Silêncio de Lorna, os irmãos Dardenne, Luc e Jean-Pierre, diretores belgas, conseguem demonstrar de forma magistral o quanto, no surto psiquiátrico, os fenômenos elementares, por exemplo: como ver e ouvir vozes; podem ser excelentes meios de defesa e proteção da saúde psíquica e integridade física do sujeito. Paradoxalmente, ao que sempre escutamos...

O roteiro, que levou prêmio em Cannes em 2008, narra a estória de Lorna, muito bem interpretada por Arta Dobroshi, uma emigrante albanesa. Lorna deseja abrir uma lanchonete com o namorado Sosho, para tal, ela precisa de dinheiro e da cidadania belga. Então ela tem a ‘ideia brilhante’ de se unir a Fabio (Fabrizio Rongione) e assim os dois decidem que ela deve se casar com o viciado Claudy (Jérémie Renier) e, após a cidadania conseguida, devem matar o viciado. O segundo passo do plano é casar-se com um mafioso russo. Dessa forma, conseguiria dinheiro e cidadania.

 Um ‘plano fácil’ com assassinato e máfia envolvida. Pessoas da pesada do mundo do crime. Qual a possibilidade de Lorna estar sã ao topar uma loucura dessas?

A questão que o filme também trabalha é que há um conluio entre questões humanas e sociais. O quanto não são poucos os casamentos arranjados que estão acontecendo atualmente na Europa e EUA? Este tipo de situação a qual Lorna passou parece ser uma questão recorrente nos países de primeiro mundo. E as pessoas perdem a noção do perigo, o senso de percepção de realidade, banalizam as situações, por exemplo: por que não matar um viciado?

Lorna parece determinada e muito pragmática. Organiza sua vida em função de seus objetivos. Porém, para Lorna, existem limites, diferente da organização que está por traz. Ela tenta batalhar para que não seja preciso matar Claudy. A trama vai se desencadeando e os irmãos Dardenne mostram uma sociedade implacável e cruel.

Lorna não segura as pontas. Porém, não consegue falar com palavras, não se posiciona, não recua... Porém, seu aparelho psíquico se manifesta como que tendo vida própria: tem uma gravidez psicológica, ouve vozes... Para se chegar aos objetivos vale qualquer custo? (o filme interroga)

Este filme justifica uma posição crassa que a psicanálise tem a partir de Freud: não adianta tirar o sintoma. É preciso verificar em função de que o sintoma está se manifestando... 

No caso, parece que o aparelho psíquico de Lorna percebe o perigo e se manifesta... do meu ponto de vista de analista, é o que a salva!