quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Laços e as relações de amizade na psicanálise



Laços (2019) é um filme brasileiro de aventura produzido pela Maurício de Souza Produções, com a turma da Mônica protagonizando o elenco: Mônica, Magali, Cascão e Cebolinha, a revistinha foi para as telas e o filme é muito legal! Agrada a adultos e crianças. O roteiro é bem construído e gira em torno do sumiço de floquinho. A turma sai à procura do querido cão de Cebolinha numa grande aventura mesclando humor, desafio, perigo, frio na barriga, inclusão das diferenças e sobretudo, companheirismo.  

A começar pelo título, é bem atual e sugestivo. Laços afetivos é um dos temas top 10 de saúde mental do século XXI. Num mundo em que tudo é “trach”, descartável e jogado fora, Maurício de Souza consegue formar uma turma amiga, solidária, generosa incluindo as dificuldades individuais. Nenhum deles foi o melhor ou o campeão, mas todos suplantaram suas dificuldades singulares e utilizaram-se de seu potencial pelo bem comum de encontrar o cão e participar da aventura.

No Seminário 17 (1968-1969), Lacan discute os discursos que fazem laços e possibilitam as relações afetivas; os estudos, os amores, as relações em que ao se endereçar ao outro possibilitam construção e engajamento. Mais tarde em sua obra, questiona a forma como a sociedade vem se construindo com o consumismo e relações capitalistas que descartam as pessoas e as tratam como lixos descartáveis.

Turma assim de Laços não é tão fácil de encontrar! Muitas vezes, a pessoa, egoicamente, quer a honra somente para ela e não sabe trabalhar em equipe, não consegue dividir as qualidades ou elogiar os colegas a sua volta. Outras vezes, as dificuldades são ridicularizadas e zombadas pelos amigos. Ali não. Cada qual tinha sua qualidade e seu defeito, compartilhado e respeitado. Além da aventura, as crianças dialogavam, faziam estratégias, dividiam as incertezas.

Um dos pontos que na minha infância me fazia não ler as Revistas da Mônica era o grau de briga que existia. Para tudo eles brigavam, um provocava o outro e ainda terminava com as ‘coelhadas’ de Mônica sobre o Cebolinha, como se fosse glorioso. Isso, realmente, nunca gostei.

Uma coisa é conversar, discutir, discordar. Outra coisa é ficar atritando e partir para a força física. Se existe uma campanha para os homens deixarem de baterem nas mulheres, como aplaudir uma personagem que ganha pela força física machucando uma outra pessoa? Não gostava muito de ler, mas entendo o sucesso da vingança atingir os corações das leitoras contra o malvado vilão Cebolinha que ficava provocando a mocinha.

Porém, no filme, Maurício de Souza consegue apresentar um outro viés em que não é preciso, nem ficar no atrito e nem partir para a força física, excelente solução! Vale a pena ser visto, principalmente porque os personagens esbanjam afeto: amor e amizade borbulham entre eles, coisa rara nos dias de hoje que parece ser “chique” não gostar e não se preocupar com o outro. Assistam, de preferência em família ou com amigos!

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

terça-feira, 17 de setembro de 2019

O engodo do olhar


Ao longo de seu trabalho, Lacan foi se dando conta da importância e função do olhar. A maneira com que o sujeito olha para determinadas situações altera a forma como o sujeito irá agir e se posicionar, altera a responsabilidade e a vida da pessoa. 


Lacan, no Seminário 11, discute a técnica da anamorfose. Como um objeto ou cena podem ter uma distorção das formas, dependendo de como se olha. Dependendo do ângulo que o objeto é olhado ele toma formas distorcidas ou até irreconhecíveis. 

Lacan utiliza-se da tela Embaixadores de Hans Holbein (1497-1543), onde podemos ver um objeto estranho no primeiro plano, mas se observarmos melhor,
 reconhecemos um crânio. Num momento em que a época das navegações estava em alta... vemos o globo, a bússola e o crânio. Segundo Lacan, “o olhar muda todas as perspectivas, as linhas de força, de um mundo...” O exercício de olhar, como olhar, por que olhar, é o exercício da psicanálise. O quanto é possível se enganar ao olhar algo, imaginar, pensar, ver em outra perspectiva... 


Há um “uso invertido da perspectiva na estrutura da anamorfose.” que faz um engano nos olhos. Em francês, um “trompe l’oil”, técnica de pintura com truques de perspectiva que cria ilusões de ótica.  

Na mesma época de Holbein, temos o pintor Italiano Arcimboldo (1527-1593), que com imagens da natureza: animais, frutas, verduras e flores, pela primeira vez, cria fisionomias humanas causando um “engano nos olhos”.    

Entre os modernistas, temos o pintor espanhol Pere Borrell del Caso (1835-1910) Escaping Criticism por “esse quadro não é nada mais do que é todo quadro, uma armadilha do olhar.” Lacan. 





Além do pintor espanhol  surrealista Salvador Dali (1904-1989) e o artista gráfico holandês Maurits Escher  (1898-1972), excelentes “enganadores”... 






Entre os contemporâneos, temos Banksy, Kurt Wenner, Edgar Müller, Tracy Lee Stum, Oleg Shupliak, artistas que trabalham com Chalk art, criam desenhos tridimensionais com giz e se utilizam da técnica de projeção conhecida como anamorfose. Esta técnica cria uma ilusão de ótica 3D quando a imagem é vista a partir de determinado ângulo.



Assim como a arte pode utilizar recursos da técnica de anamorfose, o aparelho psíquico, seguindo o desejo, também pode ver transformações, distorções, recombinações, aumento de complexidade e fusões de imagens seguindo desejos, paixões, invejas, ciúmes. Segundo Lacan: “esse privilégio do olhar está na função do desejo.”

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

A busca pelo nome próprio - Lacan


A excomunhão é o termo dado por Lacan para uma das grandes viradas de sua vida profissional. Com suas ideias ousadas, sua capacidade de capturar o inconsciente do sujeito e sua articulação intelectual, Lacan não se encaixou nos moldes da IPA (Instituto formado por Freud em 1910 e coordenado pelos pós freudianos), não concordava em manter o modelo único, ideal e burocrático de prática de formação.

Incluir o inconsciente numa sociedade que prima pelo racional, pelas ciências e tecnologias não é uma tarefa fácil... Há uma tendência a excluir o caos atemporal em que o inconsciente se localiza e tentar explicar tudo pelo convencional.

No Seminário XI (1964), Lacan inicia falando sobre a excomunhão. Ele precisou se posicionar em relação ao seu pertencimento ou não numa comunidade de psicanalistas. Assim, Lacan assume a sua ruptura com o que estava estabelecido, faz um ato de corte com a mesmice dos pós freudianos, com a repetição que aliena o desejo. Pensar fora do que o Outro comprova como bom e certo, como o esperado, com o que já foi visto e com o que já foi aprovado pelo pai é sempre uma arte. Uma arte e, como toda arte, não se captura pela compreensão racional. É um modo de ser, um saber fazer, explica Lacan.

Em outros documentos podemos ver que Lacan demorou 2 anos para fazer essa ruptura, que ele ficou sendo avaliado e interrogado por outros profissionais por longos e tenebrosos anos. Dessa forma, podemos ver que nem para Lacan foi fácil abrir mão desse Outro que aprova e que comprova sua validade, essa comunidade de colegas que carimba sua beatitude (palavra usada por Schreber, clássico paciente de Freud) ou sua incompletude.  

Porém, foi ao abrir mão, fazer o corte e parar de responder ao Outro da certeza que Lacan pode ser realmente LACAN. A clínica comprova seus efeitos. Não é preciso o outro aplaudir, bajular, comprovar egoicamente sua posição. A clínica responde a seus atos e isso basta. Ir pela lógica do inconsciente, abrir mão de ego, de ser compreendido pela ordem da razão e de “ser amado”, é um dos passos para uma grande guinada pessoal e profissional. 

Em Psicologia das massas e análise do eu (1991), Freud discute a capacidade psicológica do líder em mover as massas para fazer de uma pessoa execrável (como Hitler) se tornar uma pessoa aclamada a ponto de toda a população executar tarefas atrozes como puras marionetes de um senhor. Da mesma forma, os lideres podem execrar e expulsar pessoas com o simples poder de identificação e manipulação das massas.   

Ser psicanalista é batalhar para que a psicanálise sobreviva numa sociedade de massas, na qual todos são livres, mas a liberdade não garante que se saiba como sustentar a pura diferença, perto de Outros que já disseram o que fazer e qual é o caminho “certo” a seguir. A partir do desejo de analista, Lacan se posicionou em sua pura diferença. Mesmo o narcisismo sendo constitutivo do aparelho psíquico, é dele que é preciso se livrar ao bancar o desejo em nome próprio e assim marcar a pura diferença. Esse é o trabalho da análise. Abrir mão da ilusão de encontrar garantias e não fazer acordo com a mesmice compactuada pelas massas é o caminho para o nome próprio.

Minha homenagem àqueles que romperam a mesmice em busca do Nome Próprio!

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Rapunzel e o sentimento de posse


Rapunzel é um conto de fada que tem origem na Alemanha e se popularizou ao longo dos anos. Narra a história da bruxa má que resgata a bebê e a coloca numa torre.  Anos se passam até que na adolescência, um príncipe descobre e começa a frequentar a torre utilizando as tranças de Rapunzel, causando raiva na bruxa e a luta da menina por sua liberdade.


Dessa forma, é uma história de possessão de uma pessoa sobre outra. A bruxa não queria a menina como sua companhia ou para cuidar dela. Queria apenas possui-la como um objeto que se compra, que se tem. Muito comum entre os familiares que escondem os filhos embaixo das asas e possessivamente não os deixam sair, passear, ter suas próprias experiências e crescer. Os contos de fada discutem temas preciosos da natureza humana.

Em Enrolados, filme da Disney que narra a história de Rapunzel, fica evidente mais um ponto. Quando os filhos crescem e a juventude aflora, mostra, automaticamente a seus pais, que a idade chegou e muitas vezes, a beleza e a juventude foi embora. Agora é o momento deles. O encontro dos filhos com a sexualidade, o namoro e o casamento afloram ainda mais esse sentimento. Desta forma, não é incomum, pais e mães boicotarem namoros e encontros com esse sentimento. Os filhos ficando em casa, não saindo, não se casando, causam, imaginariamente nos pais, uma construção de que as coisas continuam iguais e ‘ninguém está envelhecendo’. Em Enrolados, manter Rapunzel na torre é “garantia” de beleza e juventude para a bruxa.

Em Análise terminável ou interminável (1937), Freud, no final de sua obra, se interroga a respeito do objetivo de uma análise e quando podemos declarar o término dela. Entre questionamentos coloca que o objetivo da análise é tratar o ego. Com o ego muito grande, não vemos o outro. Para Lacan, na década de 1970, a análise, além do trabalho com o ego, engloba realização de projetos pessoais e construção de laços afetivos. 

Neste sentido, a psicanálise é bem interessante para os pais verem os filhos com outros olhos. Conseguirem diminuir o ego e ver para além dele. Verem os filhos como uma pessoa separada, que têm suas ideias e vontades próprias. Além disso, é bacana que os pais consigam encontrar novos objetivos de vida e fazerem novos laços sociais quando os filhos estão saindo do ninho, estão começando a voar. Poderem pensar que uma nova vida se inicia também para eles. Hoje, com esportes e tantos recursos médicos, odontológicos, nutricionais e estéticos, aos 50, 60 anos, é possível estar em forma, começando uma nova vida, uma nova profissão e, quem sabe, um novo casamento. Ou seja, não é segurando a vida de uma pessoa que garantimos a plenitude e a juventude do outro. Isso é uma ilusão, um pensamento imaginário. Assim como a ideia de ficar solteiro para “garantir” a juventude. A vida passa para todos. A idade chega para todos. O importante é que no caminho consigamos ter construções, realizações e pessoas queridas à volta. Pessoas que queiram ficar ao nosso lado sem precisarmos amarrar ninguém na torre.  

Por: Fabiana Ratti, psicanalista

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

A Bela adormecida e a paralisia frente a determinadas situações da vida




O clássico conto de fadas A Bela adormecida mostra uma princesa que recebe uma maldição e aos 15 anos fura o dedo em um fuso e cai adormecida até que o príncipe apareça.

Belas e belos adormecidos aparecem aos montes no divã. Em muitos momentos, como analista, sinto: “mais um(a) bela(o) adormecida(o)”, ou seja, mais uma pessoa que deixou passar tanto tempo para mexer numa situação que estava incomodando. É muito comum a pessoa ficar inerte em sua pulsão de morte. Ficar presa numa bolha e não conseguir dar um passo. Como Aurora. Paralisada em sua cama esperando uma outra pessoa fazer algo.  E assim, passam-se anos... 

Quando a pessoa decide ver, é um choque. A pessoa fica estarrecida de como aceitou tal situação, como não tomou atitude, como ficou na posição de objeto não se manifestando.  Todos passam por isso. É impossível estar atento a tudo, ver tudo e se posicionar para tudo. Não há quem não tenha passado por uma análise e nunca tenha sentido: “Como deixei passar tanto tempo? Como não me posicionei nessa situação?” E mesmo quando a pessoa começa a ver, vai um tempo até compreender, ‘cair a ficha’, abstrair e concluir para tomar uma atitude sábia e interessante para ela.

Também podemos dizer que o sangramento e o começo do sono profundo têm a ver com a fase da adolescência. O fim da infância e uma passagem para a vida adulta, momento em que Aurora desperta uma mulher preparada para a vida ao lado do príncipe. Nessa fase, mesmo sendo bastante agitada, nada dormente, é uma fase em que, muitas vezes, na análise, a pessoa não se reconhece. A pessoa ainda está formando sua personalidade, faz coisas que depois se arrepende, age por impulsividade. E então, mais pra frente, se define, se nomeia, desperta para a vida.

Independente da adolescência ou não. É muito comum ficarmos dormentes para determinadas situações que nos incomodam e não queremos mexer. Não querermos pagar o preço da visão, encarar os problemas de frente... e assim, como a bela adormecida, repousamos felizes e dormentes por anos...até que um dia, é preciso lidar com as consequências dessa paralisia.   

Por: Fabiana Ratti, psicanalista