segunda-feira, 24 de junho de 2019

Agatha Christie, Hercule Poirot e o saber inconsciente para desvendar crimes


Ler Agatha Christie (1890-1976) é sempre emocionante. Ela tem mais de 80 livros publicados e é uma das autoras mais lidas do planeta. Seus enredos se passam cada vez num local, num país, num ambiente diferente. De um capítulo ao outro novas informações, interrogações e personagens tomam conta do mistério. 


Como psicanalista penso em três pontos interessantes de Hercule Poirot, seu mais famoso personagem detetive particular.

Um ponto que merece aplausos é como Hercules Poirot gosta de usar sua ‘massa cinzenta’, seu cérebro, seu poder de raciocínio e dedução. Como ele gosta do exercício de pensar, perguntar, articular e deduzir. Ele gosta de usar seu órgão intelectual. Ele se interessa, observa, se esforça. Isto lhe dá prazer, o intriga e o diverte. Parabéns! Que este personagem inspire pessoas a gostarem mais desse exercício!

O segundo ponto interessante é que ele diz que não usa apenas o saber intelectual para suas deduções, mas que o mais importante é seu uso de psicologia, diz ele. Então, ele observa como as pessoas se comportam, de quem elas gostam, como elas se tratam. Seu trabalho de observação é bastante minucioso. Ele está atento aos mínimos detalhes, olhares, posição dos objetos e afetos envolvidos, como confiança, fidelidade, traições.

E o terceiro ponto, seu diferencial, é que ele sempre está atento ao discurso do sujeito. Ele captura na linguagem, num ato falho, numa maneira de falar, numa maneira de escrever; uma nuance, uma
vírgula, uma suspeita. O inconsciente se denuncia através de lapsos, atos falhos, erros. Como a famosa frase: “O criminoso volta ao lugar do crime.” De alguma forma, a pessoa deixa sua impressão digital no crime.
Lacan invertendo a lógico cartesiana da racionalidade e diz: “Penso onde não sou, sou onde não penso.” O sujeito aparece ali onde ele não pensa, onde escapa, onde o racional se esconde e aparece o sujeito do inconsciente. Hercule Poirot é sagaz e captura o inconsciente. Ele observa para além das provas concretas e para além do que a racionalidade alcança.  É um personagem que inclui e brinda esse outro saber e a importância de tentarmos observar as situações por outro prisma e alcançar novas verdades!


Por: Fabiana Ratti, psicanalista

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Branca de Neve e a rivalidade feminina


Branca de Neve é um clássico que discute a rivalidade mãe e filha. Teve origem na Alemanha e se popularizou com autores como Os irmãos Grimm. Os contos de fada utilizam-se de recursos para suavizar sentimentos dividindo os personagens entre bons e maus, como se fossem planos, como se não houvesse ambiguidade nos seres humanos. Um desses recursos é colocar a madrasta ou uma bruxa, com todas as características terríveis, protegendo a mãe já falecida.


Hoje em dia existem muitos movimentos de mães que falam em blogs e youtubes, expressando o quão difícil é a maternidade, mostrando o quanto não são apenas sentimentos bons e de amor que são suscitados na relação mãe-filha. Na época, o recurso prevalente era a madrasta e as bruxas, e assim, a madrasta de Branca de Neve, frente ao espelho, faz a clássica pergunta:

“Espelho, espelho meu, existe uma mulher mais bela do que eu.” 

Esta frase é ótima, bem narcísica e super atual! Como se não existissem tipos diferentes de beleza e, muita produção para alcançar a beleza esperada... os concursos de Miss e as 100 mais bonitas continuam preenchendo as capas de revista e aquecendo o mercado. Ok, a estética é uma fatia da arte que merece ser apreciada! Desde que não termine em morte, como é o caso de Branca de Neve, cuja madrasta decide matá-la por descobrir ser ela a mais bela do momento.

O bom caçador, não tendo coragem de matá-la, conta a verdade e Branca de Neve foge indo refugiar-se na casa dos 7 anões. A princípio, aquela visitante intrusa trouxe medo e desconforto para uns, mas logo, com sua meiguice, ganha o coração de todos os anões.

No filme da Disney, nesse momento, o zangado fala uma frase bem interessante:

“As mulheres são cheias de sortilégios.”

Querendo dizer o quanto elas têm artimanhas para conseguir tudo o que querem, assim como Branca de Neve chega na casa e já coordena, direcionando para o que acha melhor: manda os anões lavarem as mãos antes de jantar!

Freud passou anos de seu trabalho tentando entender “O que quer uma mulher”, passando a bola para Lacan que se debruçou sobre o assunto e chegou na singularidade absoluta do ser. Não existem dois seres iguais e não há, no inconsciente, um significante que determine uma mulher, um sujeito. Não é possível transmitir a posição feminina nem de mãe para filha. É algo que deve ser construído de maneira individual. Porém, até que a pessoa tenha essa construção subjetiva de si próprio, é muito comum ela não suportar conviver com alguma mulher que lhe incomode, alguma mulher específica. Como se elogiar uma mulher, automaticamente estivessem dizendo que a outra mulher é feia. Exaltar a beleza ou a qualidade de uma, aponta o furo e a castração da outra. E não é isso. Lacan escreve um texto em que diz: “Não há espaço para dois.” Quando a pessoa não tem seu espaço subjetivo construído: quem é, qual sua beleza, qual sua inteligência ou sua potencialidade, a pessoa fica vulnerável e o que está fora abala seu interno. Assim, o sujeito não aguenta, não suporta ver e se defrontar com o outro, não há espaço para dois em seu aparelho psíquico. Desta forma, a rivalidade feminina é intensa. Ver a outra é se deparar com o falta-a-ser fundamental e isso desestrutura a pessoa.

Muitos dizem ser caro uma análise porém, comprar bolsas e sapatos, roupas de marca ou ir ao cabelereiro somente para rivalizar com a outra, também sai bem caro! Fora a energia psíquica investida! Não se trata de gênero, a partir dos estudos sobre o feminino Lacan chegou na singularidade de todo sujeito. Dessa forma, é muito comum vermos pessoas com parceiros falando muito mal desses parceiros... sua incompetência, inabilidade, insuficiência. Quanto mais rebaixamos o outro mais o aparelho psíquico se sente enaltecido. Como se falar do outro fosse elogiar a si próprio. Ou seja, a rivalidade é um perigo. É um perigo destruirmos o outro apenas para colocar a castração no outro e nós ficarmos inteiros, belos e maravilhosos!! Formas psíquicas de matar o outro e nos enaltecermos, variações do mesmo tema de Branca de Neve.   

A madrasta de Branca de Neve, não tendo um espaço psíquico de subjetividade constituído e o ego bem inflado, acredita que, somente matando a outra, que conseguiria ter sua beleza preservada. Isso é uma grande ilusão pois, naquele momento era Branca de Neve, depois poderia ser outra, outra, e mais outra. Isso existe direto em nossas vidas cotidianas. Pessoas que não suportam conviver com outras e precisam ‘cortar suas cabeças’, mesmo que sendo em sentido figurado, pois conviver com a beleza, a inteligência ou a capacidade do outro pode se tornar insuportável.

Infelizmente, essa rivalidade pode acontecer mesmo entre mães e filhas, entre pessoas muito próximas, na mesma família. Quanto mais amor, mais vulnerabilidade, mais os olhos ficam ofuscados e o sujeito tem dificuldade em se separar e admirar, suportando a beleza e a felicidade do outro que está ali em frente. Por outro lado, é bem bacana quando a pessoa, tendo um espaço subjetivo constituído, não apenas suporta conviver com pessoas belas e talentosas, como as admira e as incentiva, impulsionando o crescimento de todos em volta.     

Por: Fabiana Ratti, psicanalista

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Cinderela, o príncipe e a psicanálise



Cinderela é um dos contos de fada mais lido, interpretado e filmado, um dos mais populares que existe. Como mãe de duas meninas, foi um dos filmes mais visto entre Branca de Neve e Bela Adormecida. Sentirei saudades desse tempo!

Cinderela, a moça que ficou órfã e foi criada pela madrasta, precisava fazer o serviço pesado da casa para que as filhas da madrasta tivessem regalias provoca, automaticamente, uma empatia no público. Depois, na noite do baile, sofrendo despeito e maus tratos, é obrigada a ficar em casa e não tem a chance de se divertir e ver o príncipe como todas as moças de sua idade. Então, vem a redenção, a vingança. Cinderela é agraciada com uma fada madrinha. Sua bondade e dedicação merecem uma recompensa. Chegou o seu dia! Ganha roupa, carruagem, sapatinho de cristal. Cinderela chega ao baile maravilhosa! Linda em seu vestido azul e encanta os olhos do príncipe.

Muitos costumam dizer que príncipe encantado não existe. E, como psicanalista, concordo que ver a pessoa, ficar num baile e viver feliz para sempre, não existe. É preciso conhecer, selecionar, conversar, conviver para ver se existe um entrosamento, uma ligação, pensamentos em comum, hábitos parecidos para que possam fazer atividades em conjunto e passar momentos agradáveis.
Porém, pela clínica, também vejo o contrário. Vejo que todos podem ter “o seu dia”. Muitos me contam um dia especial, um dia em que ganhou presentes como se fosse de uma fada madrinha, um dia em que encontrou uma pessoa bacana e o mundo parou, como se só existissem eles no salão, como se só existissem olhos um para o outro.

A questão é que muitas vezes, o aparelho psíquico fala mais alto e não aguenta, não suporta a felicidade, e assim, infelizmente, a própria pessoa destrói esse momento mágico e pica a sua oportunidade de ser feliz. Freud discute essa questão em “Arruinados pelo êxito”. A Capacidade que a pessoa tem de destruir a própria felicidade.

Em 1920 Freud publica: “Para além do princípio do prazer” e nele explica que existe uma ‘compulsão à repetição’, ao fracasso, ao pior, à inércia. A ‘pulsão de morte’ fala alto nesses momentos destruindo situações que poderiam ser maravilhosas. Um dos objetivos de fazer uma análise é frear a compulsão à repetição e se responsabilizar por sua vida e suas escolhas, não transformando o príncipe em um sapo. Ou seja, uma das queixas frequentes em análise é a famosa frase: Quem eu amo não me ama, e quem me quer eu não quero. Como analista, é perceptível que quando aparece a fada madrinha, quando o príncipe aparece como um presente, muitas vezes, a pessoa não demonstra nem vontade de conhecer, de dar uma chance, de se aproximar. Muitas vezes, a pessoa fica na compulsão à repetição de sofrer, de chorar, desprezando oportunidades que são verdadeiros presentes.

Desse ponto de vista, sinto que existem muito mais príncipes encantados e que poderia haver muito mais Cinderelas por aí, se as pessoas abrissem o coração e dessem uma chance para situações inesperadas e pessoas diferentes. Há uma dificuldade em lidar com o Real, com a surpresa; apostar em situações diferenciadas, experimentar. Então, as pessoas ficam fixas esperando uma única pessoa imaginária que muitas vezes é impossível, ou não existe, e não se abrem para momentos inusitados, para pessoas de carne e osso. Além de tudo, ficam pensando no outro que não apareceu, ou na pessoa que perdeu, não conseguem se concentrar no presente e construir uma nova realidade.  Quando a fada madrinha surge, não percebem. Picam o vestido, jogam fora o sapatinho e reclamam da abóbora. Não conseguem ver o que há “Para além do princípio do prazer”, para além do que a vista alcança.

Hoje, 12 de junho, dia dos namorados, olhe em volta, abra seu coração, dê uma chance, fique mais aberta e condescendente para ser feliz com seu príncipe!!  

Por: Fabiana Ratti, psicanalista

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Harry Potter, bruxo e humano


Falar sobre Harry Potter dispensa apresentações. É a saga de 7 livros e oito filmes de fantasia mais lidos e vistos em toda a história.  Comecei a lê-los quando já tinha minhas filhas, apenas por volta de 2010, já quase 15 anos da publicação do primeiro livro em 1997. Foi bem emocionante viver esse
universo. Foram quase dois anos e após cada livro lido, víamos os episódios com emoção, comentávamos, brincávamos representando os personagens queridos que passavam apuros e com sagacidade, criatividade, muita amizade, companheirismo e magia venciam os mais difíceis obstáculos.

Como psicanalista, o que mais me impressionou, logo no começo do primeiro livro, foi a característica humana que Harry Potter tinha. Quando pensava que ia ler um livro de um bruxo, o que mais me vinha à cabeça era a capacidade dele conseguir ter tudo aquilo que ele queria. E, muito me espantou ao ver o quanto de limitações, regras e dificuldades no trato com os colegas; o quanto Harry sofria com preconceitos, boicotes e invejas. Situações humanas que nós passamos e, mesmo conseguindo atravessar paredes para pegar o trem e usar a capa da invisibilidade sem ninguém vê-lo, ele sofre do ponto humano mais discutido em análise: a castração. A dificuldade que o ser humano tem de ser limitado, amputado, castrado. Para tudo ter um preço e ao escolher algo, ser necessário abrir mão de muitas outras coisas.

Quando eu era pequena, eu assistia ao seriado A Feiticeira. E esta sim, balançando o nariz, conseguia sair das mais diversas situações. Samantha, A Feiticeira, também mostrava uma vida bem humana, situações do cotidiano, situações com marido e família. Porém, a única limitação que a deixava em apuros era que o feitiço só poderia ser desfeito pelo próprio feiticeiro que o fez e, sua família a deixava de cabelos em pé com feitiços que punham seu marido ‘humano’ em apuros. Fora isso, era uma alegria!! Ela conseguia maravilhosamente se livrar de tarefas chatas como lavar a louça, passar aspirador de pó, ou fazer uma bela refeição em minutos. Ou mesmo trocar de roupa em um segundo, arrumar um brinquedo para a filha ou estar em Paris no momento seguinte. Samantha quase não sofria de castração. Ela podia ter tudo. Ter muita idade e ser jovem. Ter um marido humano que não gostava de magia e continuar fazendo magia sem ele perceber muito. Podia colocar uma piscina no quintal nas tardes de calor só para dar um mergulho e depois desfazê-la.         

Harry Potter e seus amigos não. Eles precisavam ler, estudar, fazer provas. Hogwarts, a Escola de Bruxarias, tinha regras rígidas, consequências, castigos. Não era possível fazer feitiço fora da escola, o que dificultava bastante a situação para Harry, pois ele tinha uma missão e verdadeiros inimigos que muitas vezes, pareciam ter forças mágicas superiores às dele, afinal, ele ainda era um menino que estava na escola.

O bonito de Harry é, sobretudo, a bela mensagem que ele deixa. Mensagem de amizade, união, força, batalha, persistência. A mensagem para usarmos a cabeça e o coração nas situações que enfrentamos. De ficarmos do lado do bem, ajudarmos o outro, fazermos ligações entre as pessoas por um propósito de vida. A responsabilidade que temos em diversas situações e a importância de cada um nessas situações. Harry Potter é inteligente, estratégico, querido com as pessoas, dedicado, um grande mago. Mas não é narcisista. Ele sabe reconhecer o valor de cada um em sua vida, a contribuição de cada um na resolução do problema maior. Harry Potter e seus amigos são muito queridos e transmitiram ideais humanos importantes para toda uma geração. As castrações (limitações) sentidas por eles, só os tornam mais humanos e os aproximam mais de seus fãs!


Por: Fabiana Ratti, psicanalista lacaniana.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Moana: um mar de aventuras


Moana (2016) é um filme de animação musical americano produzido e distribuído pela Walt Disney Picture. Moana, uma heroína com traços tropicais e miscigenados, vivia com sua família numa ilha amaldiçoada onde os coqueiros davam coco estragados e as águas não davam peixe, assim, era preciso atravessar a arrebentação para pescar, o que passava a ser muito perigoso.

Moana, quando criança, encontra uma pedra, o que a torna, a próxima líder do grupo e a responsável por quebrar a maldição de anos. Uma tarefa bastante ousada para uma adolescente, mas que é bem bonito de ver a confiança com que a avó aposta na neta e como esta assume a responsabilidade sem titubear.

Para a psicanálise lacaniana, o olhar dos pais e da família para com o bebê que chega no lar, faz toda a diferença em relação à confiança e à responsabilidade que esta vai assumir ao longo de sua vida.     
Um ponto que me causou profunda interrogação foi como Moana, vivendo numa ilha, conseguiu passar a infância e a pré-adolescência, longe do mar???? Como é possível? Numa ilha paradisíaca, com céu azul, coqueiros e vegetação abundante, uma água azulada e areia macia, passar anos e anos sem ir para a praia? Isso me causou mais interrogação do que a aventura que Moana enfrenta solitária em sua jangada em mar aberto.

Morar em uma ilha e não ir ao mar “é como mergulhar num rio e não se molhar. É como não morrer de frio no gelo polar” (diria Skank). Podemos recorrer ao conceito de “privação” de Lacan para pensar sobre isso. O quanto temos perto de nós tantas coisas boas, tantos recursos, tantos lugares para ir, mas nos privamos e nem ao menos sabemos o que estamos perdendo... Quando vamos a primeira vez, descobrimos que estamos perdendo bastante, então temos de nos responsabilizar para voltar, para fazermos programas que nos fazem bem, que tem a ver com nosso estilo pessoal, com nossa identidade.

Em se tratando da missão de Moana, ela é bem corajosa e isso é muito admirável! Por seu povo e por sua ilha, ela coloca a jangada em alto mar, enfrenta as tormentas do mar, luta com o inimigo e retorna sã e salva para trazer fartura e prosperidade a seu povo. 

Muitas vezes temos a sensação de estarmos sozinhos em alto mar. Sentimos que as ondas vão nos levar, que as tempestades vão nos destruir e que o inimigo irá nos devorar. Aí então, no dia seguinte, um novo céu azul aparece, as águas ficam calmas e vemos que nossos talentos parecem mágicas como as de Moana. Segundo Lacan, cada um tem seu talento, tem seu poder, e se soubermos utilizá-los podemos ir longe, assim como Moana, mar aberto, horizonte para todos os lado. Só é preciso ter coragem! 

Por: Fabiana Ratti, psicanalista lacaniana.