quarta-feira, 19 de junho de 2019

Branca de Neve e a rivalidade feminina


Branca de Neve é um clássico que discute a rivalidade mãe e filha. Teve origem na Alemanha e se popularizou com autores como Os irmãos Grimm. Os contos de fada utilizam-se de recursos para suavizar sentimentos dividindo os personagens entre bons e maus, como se fossem planos, como se não houvesse ambiguidade nos seres humanos. Um desses recursos é colocar a madrasta ou uma bruxa, com todas as características terríveis, protegendo a mãe já falecida.


Hoje em dia existem muitos movimentos de mães que falam em blogs e youtubes, expressando o quão difícil é a maternidade, mostrando o quanto não são apenas sentimentos bons e de amor que são suscitados na relação mãe-filha. Na época, o recurso prevalente era a madrasta e as bruxas, e assim, a madrasta de Branca de Neve, frente ao espelho, faz a clássica pergunta:

“Espelho, espelho meu, existe uma mulher mais bela do que eu.” 

Esta frase é ótima, bem narcísica e super atual! Como se não existissem tipos diferentes de beleza e, muita produção para alcançar a beleza esperada... os concursos de Miss e as 100 mais bonitas continuam preenchendo as capas de revista e aquecendo o mercado. Ok, a estética é uma fatia da arte que merece ser apreciada! Desde que não termine em morte, como é o caso de Branca de Neve, cuja madrasta decide matá-la por descobrir ser ela a mais bela do momento.

O bom caçador, não tendo coragem de matá-la, conta a verdade e Branca de Neve foge indo refugiar-se na casa dos 7 anões. A princípio, aquela visitante intrusa trouxe medo e desconforto para uns, mas logo, com sua meiguice, ganha o coração de todos os anões.

No filme da Disney, nesse momento, o zangado fala uma frase bem interessante:

“As mulheres são cheias de sortilégios.”

Querendo dizer o quanto elas têm artimanhas para conseguir tudo o que querem, assim como Branca de Neve chega na casa e já coordena, direcionando para o que acha melhor: manda os anões lavarem as mãos antes de jantar!

Freud passou anos de seu trabalho tentando entender “O que quer uma mulher”, passando a bola para Lacan que se debruçou sobre o assunto e chegou na singularidade absoluta do ser. Não existem dois seres iguais e não há, no inconsciente, um significante que determine uma mulher, um sujeito. Não é possível transmitir a posição feminina nem de mãe para filha. É algo que deve ser construído de maneira individual. Porém, até que a pessoa tenha essa construção subjetiva de si próprio, é muito comum ela não suportar conviver com alguma mulher que lhe incomode, alguma mulher específica. Como se elogiar uma mulher, automaticamente estivessem dizendo que a outra mulher é feia. Exaltar a beleza ou a qualidade de uma, aponta o furo e a castração da outra. E não é isso. Lacan escreve um texto em que diz: “Não há espaço para dois.” Quando a pessoa não tem seu espaço subjetivo construído: quem é, qual sua beleza, qual sua inteligência ou sua potencialidade, a pessoa fica vulnerável e o que está fora abala seu interno. Assim, o sujeito não aguenta, não suporta ver e se defrontar com o outro, não há espaço para dois em seu aparelho psíquico. Desta forma, a rivalidade feminina é intensa. Ver a outra é se deparar com o falta-a-ser fundamental e isso desestrutura a pessoa.

Muitos dizem ser caro uma análise porém, comprar bolsas e sapatos, roupas de marca ou ir ao cabelereiro somente para rivalizar com a outra, também sai bem caro! Fora a energia psíquica investida! Não se trata de gênero, a partir dos estudos sobre o feminino Lacan chegou na singularidade de todo sujeito. Dessa forma, é muito comum vermos pessoas com parceiros falando muito mal desses parceiros... sua incompetência, inabilidade, insuficiência. Quanto mais rebaixamos o outro mais o aparelho psíquico se sente enaltecido. Como se falar do outro fosse elogiar a si próprio. Ou seja, a rivalidade é um perigo. É um perigo destruirmos o outro apenas para colocar a castração no outro e nós ficarmos inteiros, belos e maravilhosos!! Formas psíquicas de matar o outro e nos enaltecermos, variações do mesmo tema de Branca de Neve.   

A madrasta de Branca de Neve, não tendo um espaço psíquico de subjetividade constituído e o ego bem inflado, acredita que, somente matando a outra, que conseguiria ter sua beleza preservada. Isso é uma grande ilusão pois, naquele momento era Branca de Neve, depois poderia ser outra, outra, e mais outra. Isso existe direto em nossas vidas cotidianas. Pessoas que não suportam conviver com outras e precisam ‘cortar suas cabeças’, mesmo que sendo em sentido figurado, pois conviver com a beleza, a inteligência ou a capacidade do outro pode se tornar insuportável.

Infelizmente, essa rivalidade pode acontecer mesmo entre mães e filhas, entre pessoas muito próximas, na mesma família. Quanto mais amor, mais vulnerabilidade, mais os olhos ficam ofuscados e o sujeito tem dificuldade em se separar e admirar, suportando a beleza e a felicidade do outro que está ali em frente. Por outro lado, é bem bacana quando a pessoa, tendo um espaço subjetivo constituído, não apenas suporta conviver com pessoas belas e talentosas, como as admira e as incentiva, impulsionando o crescimento de todos em volta.     

Por: Fabiana Ratti, psicanalista

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