sábado, 7 de dezembro de 2019

Cinquenta tons de cinza – o sadismo, o masoquismo e a psicanálise


A pedidos... vamos discutir Cinquenta tons de cinza (2015) dirigido por Sam Taylor Jhonson e baseado no best-seller de E. L. James. Narra a história da universitária Anastásia Steele que começa a ter uma relação sadomasoquista com o magnata Christian Grey. Esses filmes geram muitos debates e comentários, causam furor e como podemos ver, ressurgem em diferentes décadas como: O último tango em Paris na década de 1970, Nove Semanas e meia de amor nos anos 1980.


Na época em que foi lançado 50 tons de cinza trouxe muitos comentários ao divã, mas o pior deles era que o casal escolhido para o filme não tinha química. Uma pena! Para a sétima arte, logicamente, esse é um dos erros crassos afastando o público de sua arte.


O segundo ponto que mais apareceu foi a interrogação: por que isso acontece? Como começa? Como se instala o sadomasoquismo?


Para o conhecimento básico e fins de utilidade pública, o sadismo e o masoquismo são estruturantes do aparelho psíquico. Sim. Todos temos sadismo e masoquismo. Freud tem alguns textos em que explica o que vem primeiro, se eles estão juntos ou separados, mas de toda forma, eles têm uma função importante para a construção e manutenção do aparelho psíquico. A questão é como usar, como dirigir essas pulsões e o quantum de investimento psíquico que será canalizado para as funções sexuais.

A sexualidade e a agressividade, por excelência, em pedra bruta, são os dois resíduos que aproximam o ser humano do animal. Freud utiliza um termo para a criança que é bem interessante: perversa polimorfa. Muitas formas de satisfação. A criança, se não está satisfeita, chora a qualquer hora, grita, esperneia, usa sua agressividade e a sexualidade (satisfação pulsional, oral, anal...) indiscriminadamente. Faz qualquer coisa a qualquer hora. É a educação, a ação dos pais, a observação em relação aos outros amigos que vai dirigindo e canalizando para que as pulsões entrem no mundo da cultura, paguem o preço do mal estar na civilização e assim, o sujeito consiga ver o outro, esperar, aguardar a sua vez, não gritar ou chorar, mas utilizar as palavras. Usar outros recursos para chegar até o outro.

Num exemplo mais concreto, podemos dizer que aquele show que a criança dá por volta de uns 3 anos de idade, se atira no chão, chora e reclama sem parar é um exercício sádico de: basta eu, não interessa o outro e vamos ver até onde o outro me aguenta, até onde posso ir. É bem interessante que aqueles que estão na função de pais se posicionem e falem: não pode ir muito longe não, vamos parar! E coloque limites, faça intervenções. Essas intervenções são estruturantes para o aparelho psíquico norteando os limites possíveis da relação do eu com o outro.

Aqueles que não conseguem e têm dificuldade de enfrentar, sabemos que o exercício sádico se estende por inimagináveis situações, dias e noites a fio e é capaz de estraçalhar famílias e relações. Esse e muitos outros exemplos existem desse tipo de testar o outro, manipular, conseguir coisas por chantagens e jogos de poder. Como filhos e casais em relação a drogas, álcool, jogatina, até chegar na cama.

O masoquismo, por sua vez, não tem escapatória. (rs) Freud descreve três tipos de masoquismo e se não os três, de um deles, você padece. (rs) Auto destruição e boicote é inerente do aparelho psíquico! Da mesma forma que o sadismo, ele é estruturante, mas ao longo da vida precisamos ir nos livrando dele, se não, fica muito pesado, ou seja, faça análise. (rs). Mas, assim como o colesterol, podemos dizer que existe o masoquismo bom e o ruim. O masoquismo bom é aquela força que temos de passar por cima de nós mesmos para alcançar algo maior. Ou seja, acordar cedo, levar as filhas na escola, começar a trabalhar cedo, se esforçar, ir fazer ação beneficente, dar uma aula. São todas as formas que passamos por cima de um princípio de prazer para nos esforçarmos por algo maior. O masoquismo ruim é aquele em que o sujeito deixa o outro passar repetidamente por cima, sem respeito, sem troca, sem pudor, nem ganho próprio.

Em conclusão: filmes que colocam o sadomasoquismo na relação sexual causam um frisson maior. Porém, o sadomasoquismo está no cotidiano. Está no aqui e agora. E a questão é ver a proporção. Como psicanalista, o que observo é que essa ‘brincadeira’ de extrapolar a dor pode ser instigante, porém perigosa. Mais, mais e mais. Pode levar a uma destruição irreversível. É comum aparecer no jornal pessoas que morreram com asfixia ou instrumentos sexuais suspeitos. Porém, como disse, não somente na sexualidade, esse limite de destruição, masoquismo e sadismo acontece cotidianamente em relações de casal e familiar e as pessoas não percebem.

Podemos assim ir para nosso dramaturgo brasileiro preferido que diz: “ - Ou a mulher é fria ou morde. Sem dentada não há amor possível. Nelson Rodrigues” Aí podemos dizer que o que rola na cama é de interesse apenas do casal, se estão se entendendo, é o que importa. Mas nesta frase está embutida uma outra verdade, de cunho um pouco mais psicológico, que Lacan também fala e que transparece nos 50 tons de cinza. Para existir um casal, há que se pagar um preço. Uma dor existe, se não, tanto faz... pode ser uma mulher ou outra. Existem tantas... O que difere uma da outra? O preço que se está disposto a pagar pelo gozo que se obtém. Os casais dos filmes citados têm um dispêndio enorme de energia psíquica, muita fissura, assim como nas drogas, mas, por outro lado, muita destruição e até distanciamento. Para ter aquilo que desejamos, sempre é preciso pagar um preço alto, algo morde. A diferença é que alguns pagam um preço alto e em consequência encontram satisfações sexuais e  destruição. Outros, com seu modo de gozo, administram os limites do sadismo e do masoquismo e conseguem, além dos prazeres, construção, realização e felicidade. Como psicanalista, acredito que a diferença está ai... 

Por: Fabiana Ratti, psicanalista 

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