Júlia Galli-Educadora
aeljugalli@gmail.com
“Curtindo a vida adoidado” (Ferris Bueller's day off) é uma comédia
adolescente filmada nos EUA no ano de 1986 e dirigida por John Hughes, (que
também produziu e escreveu o roteiro). O filme conta a história de Ferris
Bueller (Matthew Broderick), um típico adolescente americano, cuja maior
ambição é ter um carro e o maior objetivo é aproveitar a vida ao máximo. O
filme vai mostrar um dia de folga de Ferris, ao lado de sua namorada, Sloane
Peterson e de seu melhor amigo, Cameron.
Por trás da
aparente inocência e irresponsabilidade do enredo, o filme conta com cenas
antológicas, roteiro bem construído e excelentes atuações, o que o torna um
clássico do gênero, lembrando também, que o filme quebra a regra de ouro do
cinema: o ator nunca deve olhar diretamente para a camera. A princípio pode
parecer apenas mais uma comédia adolescente, mas à medida que vamos assistindo
ao filme, ele vai se revelando ser uma crítica ferina ao descaso, incompreensão
e cegueira dos adultos em relação aos anseios e angústias dos adolescentes,
algo que poucos diretores conseguiram fazer tão bem como John Hughes. O maior
mérito do filme é dar voz ao turbilhão de emoções dos adolescentes, com
sensibilidade e humor. Outros filmes já falaram sobre essa difícil fase, como
“Juventude Transviada” que apesar de belo, é um drama pesado (um chororô
interminável), mas John Hughes consegue falar desses dramas de forma leve e
algumas vezes até sarcástica, garantindo risadas do começo ao fim.
Enquanto os
adultos, representados principalmente pelos pais de Ferris e pelo prepotente
diretor da escola, continuam exatamente do mesmo jeito do início ao fim do
filme, todos os personagens adolescentes passam por um profundo processo de
transformação no decorrer da história. Cada qual a seu modo, buscando uma
maneira de se auto afirmarem e amadurecerem.
Começando por Ferris, que representa o
típico adolescente americano, individualista e descrente do mundo em que vive,
ele não acredita mais na família, nem na escola, nem em nenhum “ismo”, acredita
apenas em si mesmo, e a sua única certeza é que a vida passa muito rápido, e
seu lema é aproveitar a vida da melhor forma possível. A verdade é que ele se recusa a ser como os
adultos, e mesmo sabendo que esse processo é inevitável (o de se tornar adulto),
ele não quer olhar para trás e ver que não aproveitou a vida.
Já a namorada, vivida pela atriz Mia Sara, inicialmente se apresenta
como uma adolescente que vive o presente e que quer apenas aproveitar a vida,
enquanto não decide se deve ou não se casar com o namorado, em alguns momentos
fica a dúvida se ela tem essa pretensão, pois em uma cena ela chega a mandar um
beijo para o futuro sogro. Embora ela passe boa parte do filme sem nenhum plano
para o futuro, ao final do filme, ela tem certeza de que irá se casar com
Ferris.
Cameron (Alan
Ruck) é o personagem que na minha opinião mais amadureceu no decorrer do filme.
Ele é o melhor amigo de Ferris e, além de hipocondríaco, tem sérios problemas
de relacionamento com o pai. Ele começa o filme numa cama, dizendo a Ferris,
“me deixa apodrecer em paz” mas no decorrer da trama ele faz literalmente um
mergulho dentro de si, cena por cena, passando por diversas etapas para poder
enfrentar o pai e se emancipar. De forma surpreendente, ele se revela o personagem
mais corajoso do filme, mais ainda que o nosso anti-herói Ferris.
Mais
surpreendente ainda é a transformação da irmã de Ferris (Jennifer Grey). Jeanie
Bueller é obcecada pelo irmão, e passa o filme inteiro tentando desmascará-lo.
Nessa obsessão pelo irmão (mais precisamente pelo fato do irmão poder fazer
tudo o que quer sem ser pego), ela deixa de ter vida própria, até acabar numa
delegacia, onde é obrigada a olhar para dentro de si mesma. Na delegacia ela
encontra um rapaz aparentemente drogado e desse encontro surge um diálogo
revelador. Embora o personagem (vivido pelo ator Charlie Sheen) esteja
(visivelmente) drogado, ele é o único que consegue ver de forma clara o
problema dela. Pela primeira vez ela se depara com alguém que a enxerga do jeito
que ela é, e que lhe dá atenção. Em um momento ele diz que sabe qual é o
problema dela, mas quer ouvi-lo da boca dela. Mais freudiano que isso
impossível.
Outro fato
interessante do filme é que os personagens que a sociedade americana em geral
considera como perdedores; começando por Cameron por ser tímido, a dupla de
manobristas do estacionamento, um latino e outro negro, e o drogado na
delegacia, são os que de alguma maneira vão causar surpresa e admiração nos
espectadores, o primeiro pela coragem, a dupla pela esperteza e o drogado pela
lucidez e discernimento. Por essa e muitas outras razões, eu considero esse
filme o melhor de John Hughes.
Para não dizer
que não falei do diretor da escola, fica a dúvida, será que ele deixou a sua
arrogância e aprendeu alguma coisa com essa história? Bom, assistam ao filme e
tirem suas conclusões.